segunda-feira, 3 de março de 2008

Por que há tantos apóstolos hoje?




No princípio, era a igualdade. Na vida andarilha, à margem das regras religiosas, os seguidores de Jesus viam a autoridade fluir naturalmente do carisma do Mestre e aquilo era o bastante. Quando “dois ou três” se reuniam em nome dEle, qualquer conflito ou divergência podia ser resolvido por um membro da comunidade, fosse ele homem ou mulher. Como lembra o historiador e teólogo luterano Martin Dreher, em A Igreja no Império Romano, “Jesus não é patriarcal, e as tradições evangélicas também não”. Naquela atividade missionária que encarnava a esperança da transformação do mundo, onde eram eliminadas as diferenças raciais, sociais e de gênero – não havia dominadores nem dominados –, Dreher encontra a base para a aceitação da mulher “como discípula, apóstola, teóloga e presbítera”. Só depois, o apóstolo Paulo, tentando adaptar a fé cristã ao patriarcado vigente na cultura greco-romana, sugeriu que a mulher entrasse em submissão, recebendo como compensação o amor do marido. Estava lançado o “patriarcado do amor” e o homem tornou-se a primeira autoridade religiosa do cristianismo.

Os sistemas de governo religioso foram se sofisticando com a institucionalização da igreja. Surgiram as autoridades eclesiásticas, numa hierarquização crescente que desaguou no episcopado monárquico por volta do ano 140, ou seja, a liderança da comunidade centrada em uma só pessoa, o bispo.

Policarpo de Esmirna, Clemente de Roma, Inácio de Antioquia e Irineu de Lyon foram alguns dos que exerceram o episcopado monárquico que coincidiu com a exclusão da mulher dos ministérios da igreja. Explica-se: autores do segundo século, como Tertuliano e Orígenes, passaram a atacar as mulheres que pregavam e batizavam na tradição da apóstola Tecla, infamando-as como “prostitutas”. Em menos de dois séculos de igreja, a mulher que foi apóstola, profetisa e diaconisa na comunidade primitiva, tornou-se “a porta para o pecado” e foi despojada de sua integralidade feminina, só conseguindo permanecer na igreja como monja.

O episcopado monárquico radicalizou-se no papado até que Martinho Lutero inaugurasse a Reforma Protestante no século 16. Retornaram, então, os “pastores e mestres” que fechavam a lista de dons ministeriais do capítulo 4 de Efésios e, mais tarde, os “evangelistas”, como Dwight Moody e Charles Finney, nos Estados Unidos do século 19.

O título de bispo, que permaneceu muito ativo entre os católicos romanos, tornou-se raro na Reforma. Na passagem para o século 20, apenas a Igreja Anglicana e sua dissidente, a Metodista, incorporavam o bispado, enquanto que a Batista e a Presbiteriana jamais viriam a adotá-lo.

Foi na década de 70 que os evangélicos despertaram para o título epískopo, no momento em que a igreja católica atravessava sua “era de ouro” do bispado com Hélder Câmara, Pedro Casaldáliga, Paulo Evaristo Arns e José Maria Pires, o Dom Pelé, que se notabilizaram pela defesa dos pobres e o combate à ditadura. O episcopado evangélico, no entanto, distanciou-se da ideologia dos bispos católicos, assim como de suas regras, onde o bispo pode ser promovido a cardeal, por exemplo.

PENTECOSTAIS NA VANGUARDA

Não coube a uma igreja histórica, mas a uma do movimento pentecostal – a Nova Vida – inaugurar a adoção do bispado no ambiente protestante moderno, o que acabou virando quase uma mania. “Adotamos o sistema episcopal por razões internas. Sendo o pastor Roberto Mc Allister, na época, membro do diálogo entre católicos e pentecostais que acontecia em Roma, precisávamos de uma identificação mais específica. Eles queriam saber a quem se reportar para falar de assuntos de interesse comum. Depois de muitos estudos, concluímos que o termo ‘bispo’, além de ser bíblico, indicava perfeitamente o que desejávamos: um líder de pastores. O bispo, em nosso contexto, é o pastor dos pastores. Assim, em 1975, houve a ordenação do pastor Roberto como bispo primaz da Igreja de Nova Vida”, explica Tito Oscar, o mais antigo bispo em atividade na igreja evangélica brasileira e que preside a Nova Vida em São Paulo, mantendo o governo episcopal com linha doutrinária pentecostal.

Tito Oscar lamenta que o cargo de bispo tenha se banalizado com o tempo: “Infelizmente, o título passou a ser usado por outros ministérios sem que eles entendessem a sua razão. Virou lugar-comum. Para nós, entretanto, tem um significado especial”. Depois disso, outro discípulo de Mc Allister, Edir Macedo, tornou-se o primeiro bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, que hoje conta com o maior quadro de bispos da igreja evangélica: em torno de 200, segundo fontes extra-oficiais. A Universal criou também o cargo de bispo auxiliar, um escalão intermediário entre o pastor e o bispo pleno.

Manoel Ferreira, único bispo da Assembléia de Deus, condena os exageros e explica que, conceitualmente, “bispo é aquele que preside sobre os outros”. Convidado para ocupar este cargo na igreja evangélica da Rússia – onde a AD está presente desde 1991, agora com 97 igrejas e dois seminários –, acabou tendo o título homologado no Brasil pelo fato de já presidir o ministério de Madureira, ainda que o bispado não exista na hierarquia da denominação.

Na Igreja da Graça – outro ministério em escala internacional –, o líder máximo R.R. Soares, por sua vez, dispensa o título de bispo e prefere ser chamado de “missionário”. A grande novidade, no entanto, foi a ordenação de bispas, a partir da década de 90, com a inclusão de mulheres nos altos cargos da igreja (ver quadro). Procurada por Enfoque para falar sobre essa questão, a primeira bispa evangélica brasileira, Sônia Hernandez, não respondeu às questões enviadas.

NOVOS APÓSTOLOS

Se os evangélicos parecem ter se acostumado com os bispos, agora é a vez dos apóstolos se multiplicarem nos púlpitos e nos meios de comunicação. Em Efésios 2, está registrado que a família de Deus é edificada sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”, dons que encabeçam a lista dos serviços ministeriais citados na mesma epístola. Se para alguns, como o teólogo batista Carlos Torres, isto significa que “os ensinos doutrinários dos apóstolos estão ligados ao momento de fundação da igreja” e que “apóstolos são somente aqueles que estiveram com Jesus (incluindo Paulo)”, para outros, como Miguel Ângelo Ferreira, líder do Ministério Apostólico da Graça de Deus, “o apóstolo continua sendo a função mais importante da vida da igreja”. Para ele, que acumula este ministério com o cargo de bispo primaz da Igreja Cristo Vive, no Rio de Janeiro, “assim como foi necessário ungir no passado apóstolos e profetas, Deus o faz de novo por uma urgente necessidade de expansão do Reino, trazendo revelações às nações, porque os tempos do fim se aproximam”.

Ordenado apóstolo em 1991 e confirmado na Califórnia, cinco anos depois, por Billy Hammond, na Convenção Mundial de Apóstolos e Profetas às Nações, Miguel Ângelo afirma ter sido o primeiro brasileiro a “ousar vestir o manto apostólico”, uma vez que, até então, só havia bispos, pastores ou evangelistas. “O Senhor me disse: ‘Eu te chamei para ser apóstolo. Não esconda esse nome’. A partir dali, outros servos de Deus perceberam que seus ministérios iam além da igreja local. Acredito que hoje existam cerca de oito apóstolos no meio evangélico brasileiro”, afirma, sem citar nomes. Também procurado pela Enfoque, o apóstolo paulistano Estevam Hernandez não deu retorno às perguntas para a reportagem.

Miguel Ângelo, que exibe 39 diplomas de nível superior em seu currículo publicado na Internet e iniciou seu ministério também com o canadense Mc Allister, na Nova Vida, acredita que “a última reforma protestante” está em andamento desde 1980 e, nela, “o Espírito Santo está atuando soberanamente, renovando os dons ministeriais”. O apóstolo brasileiro nascido em Angola esclarece que o termo significa “enviado” e afirma crer que o atual movimento apostólico ajudará a igreja cristã, “tão desprezada pelas sociedades seculares”, a voltar à condição de “consciência dos governos”. Na convenção internacional da qual faz parte, ele tem a incumbência de ser o apóstolo para as igrejas de língua portuguesa. “Sou a voz de Deus em português para o mundo. Tenho coberto com o manto apostólico diversos ministérios pastorais na África e em outros continentes”, afirma, esbanjando convicção.

Há décadas, Miguel Ângelo cumpre uma agenda pastoral intensa nos meios de comunicação, dirige uma igreja com 56 mil membros na zona oeste do Rio, e administra um colegiado de 11 bispos. Conta com a colaboração da esposa, Rosanna – fisioterapeuta e também bispa primaz –, e do filho Miguel Ângelo Júnior, bispo nacional. “Minha igreja não é uma tribo, é um reino”, comemora, revelando que pretende ordenar 25 bispos até atingir a escala intercontinental.

Todo esse entusiasmo não comove o pastor Carlos Torres, para quem a preocupação com títulos e cargos nada tem a ver com espiritualidade cristã. Para ele, que é teólogo batista, este movimento está mais ligado “aos ditames da sociedade ocidental” do que à genuína liderança inspirada por Jesus. “Nesta adaptação do Evangelho à agenda neoliberal, o que vemos é um equívoco do que seja liderança cristã. Estão hierarquizando os ministérios para ficar claro quem manda em quem. Esses títulos, hoje, nada têm a ver com ministérios espirituais. É pura busca de afirmação humana e de poder”, conclui Torres.



O QUE PENSAM OS MEMBROS DE IGREJAS

“As igrejas estão se perdendo em títulos. Estão dando mais valor a isso do que ao ‘Ide’ de Jesus”. (Vera Lúcia Vianna de Oliveira – seminarista da Assembléia de Deus). “Acredito que títulos como os de apóstolo e bispo tenham um significado espiritual, conforme o entendimento bíblico de cada ministério”. (Fátima Almeida – Igreja Presbiteriana). “Só não entendo por que ser chamado de pastor já não basta, se até Jesus se definiu como um pastor”. (Daniel Alves Macedo – Bola de Neve Church). “Existe um movimento em torno de apóstolos e bispos que percebo ser mais de homens do que de Deus. Uma igreja bem estruturada tem o seu valor, mas há um exagero na distribuição de cargos e títulos, quando as igrejas deveriam estar mais ocupadas em alcançar os perdidos”. (Sônia Bastos – Igreja Pentecostal de Nova Vida). “Entendo que nas cartas de Paulo as funções na igreja não têm conotação de hierarquia ou poder. Porém, se a comunidade reconhece em algum líder uma autoridade superior, não vejo problema. A dificuldade surge quando alguém se autodenomina bispo ou apóstolo sem que os irmãos e demais ministros reconheçam como legítima tal autoridade”. (Ricardo Farias – Igreja Batista). “Isso não é bom para a igreja evangélica. Títulos em demasia fomentam política nas igrejas e produzem brigas de poder, até com interesses financeiros. Podem transformar servos de Deus em servos da vaidade da noite para o dia”. (Eliane Marinho – Ministério Resgatando Vidas).


BISPA EVANGÉLICA NO NORDESTE

Dar voz às mulheres, empossando lideranças femininas, fez bem à igreja evangélica brasileira, tornando-a mais parecida com Jesus. Das profetisas pentecostais obrigadas a atuar na penumbra durante os anos 70 e 80, até as bispas de hoje, foi um longo caminho de conquistas e quebra de preconceitos. Marisa Coutinho é a única mulher entre os oito bispos da Igreja Metodista. Pastora desde 1983 (uma das primeiras ordenadas no Brasil), ela participa há quatro anos da equipe do bispo Paulo Lockman. Responsável pelas igrejas do Nordeste, bispa Marisa se desdobra entre nove estados, da Bahia ao Maranhão, esbanjando cuidados episcopais e energia aos 45 anos: “Tenho muita alegria em dizer a minha idade. Vejo nisto um milagre de Deus a meu favor”. Estabelecida no Recife, mas quase sempre em viagem, ela cuida da orientação doutrinária, supervisiona atividades pastorais e educacionais, e preside as reuniões regionais que decidem os rumos da igreja. “Isto implica em muito deslocamento. A tarefa é complexa e de alta exigência, mas o Senhor cuida de nós, bispos, com muita graça e carinho”, afirma. Atuando na região mais carente do país, bispa Marisa ainda encontra tempo para se dedicar à missão social da igreja. Ela supervisiona as parcerias com os órgãos governamentais de assistência, assim como os projetos de ação social nos estados, entre estes o de dessalinização no agreste pernambucano, que atua vinculado à construção de casas e à captação de água de chuva no combate à seca do sertão. “A preocupação com a justiça social e a cidadania é grande”, afirma a bispa metodista. “Ainda que a nossa visão teológica seja “querigmática”, ou seja, voltada para a pregação da Palavra de Deus, as igrejas metodistas no Nordeste têm sido trincheiras no atendimento às necessidades imediatas dos mais carentes”. Ela considera que a ordenação feminina ainda é uma questão delicada e complexa no meio evangélico. “Mas, para nós, tanto a ordenação quanto o episcopado feminino são bênçãos de Deus. Criadas à imagem e semelhança de Deus, recebemos do Pai a mesma missão que foi dada aos homens. É uma pena que ainda existam denominações que vejam o ministério feminino como abominação ao Senhor”, conclui a bispa metodista.

Um comentário:

Vitor Hugo da Silva - Joinville, SC disse...

Amado Lukas, a paz do Senhor!

Eu mudei de BLOG, não possuo mais o BLOG (vitorhugosc.blogspot.com). O meu novo endereço é:

www.pericopecc.blogspot.com

Por favor altere no seu link meu novo endereço.

Obs: Não estou conseguindo listar os links de blogs, pois a minha página está com erro.

Vitor Hugo